escrevo como quem não quer esquecer
tentando registrar no papel tudo que importa
tempo de escrita: 25 anos
tempo de leitura do email: 15 min
dá pra ouvir também aqui.
Dandara escreveu um dia desses no Ninho:
“Eu ouvi na escrita uma extensão da minha memória, um esconderijo que guarda ideias, mais uma forma de caminhar. Também encontrei uma tranquilidade de poder esquecer, sabendo que um dia alguém vai se lembrar.”
e uau, essa reflexão sobre escrita me acertou em cheio. pq pra mim é tbm sobre isso, escrevo pra criar extensões da minha memória. seja nos mil caderninhos e blocos de anotações que carrego por aí, ou sendo o medo do esquecimento o próprio tema da escrita.
tanto que quando recebi o convite pra participar da primeira coletânea de contos do Ninho de Escritores, sobre Memento Mori, não tive como fugir do assunto.
Memento Mori significa algo como "lembre-se da finitude da vida". um lembrete que serve pra gente se atentar aos nossos maiores medos e apegos. e eu gosto muito de ser lembrada deles. mesmo quando não é confortável meus medos são os melhores professores sobre o que eu valorizo e que caminhos eu devo tomar para cuidar do que é importante pra mim.
o conto que escrevi pra coletânea devo ter começado quando tinha uns 8 anos. na época o meu medo-do-fim-do-mundo já era era que ele fosse acabar pq as pessoas iam perder a memória. então eu comecei a escrever uma história onde as pessoas esqueciam quem elas eram, como fazer as coisas, como conversar… ~tenho essa redação guardada até hoje, só não lembro onde 😨~ e é tão interessante olhar pra nossa história e entender um pouquinho mais do significado das coisas.
muitos anos depois a minha avó materna teve Alzheimer e foi como ver esse cenário de fim de mundo se realizando diante dos meus olhos. o mundo dela acabando, um pouquinho por vez, a cada vez que a gente se encontrava e ela reconhecia menos os nossos símbolos comuns.
então esse conto também foi uma forma de costurar uma outra visão sobre esses fins de mundos-memórias e honrar o que de mais bonito minha vó me deixou quando as memórias a deixaram. (ou seja, ele é totalmente inspirado em histórias, cenas e pessoas reais da minha vida - incluindo nomes e tals - com um pouquinho de ficção pra apimentar a história)
pensar sobre isso, o fim da memória e as coisas que eu gostaria de me lembrar e o que me conecta com as outras pessoas é muito importante pra mim e é sobre isso que eu escrevi nesse conto :)
hoje, pra celebrar os nossos 10 encontros (sim, essa já é a 10ª carta, tá passada? - eu sim, manter a consistência é desafio grande por aqui, aliás) compartilho esse conto na íntegra com vocês como um presente. ele só estava disponível pra quem comprasse o livro inteiro com a coletânea de contos do Ninho (o que recomendo muitíssimo que você faça pq os outros contos estão fantásticos!) e agora também para você, que escolheu estar nessa lista de e-mails. muito obrigada. aí vai:
conto:
Dançando no vazio
A desconhecida me avistou de longe com uma felicidade familiar no olhar. Acenava com os braços agitadíssimos, como se uma saudade viva tentasse desesperadamente escapar de dentro do seu corpo para vir em minha direção.
- Não acredito que você tá aqui! Que alegria! Justo hoje, que eu vim fechar a compra de uma casinha como as tantas que namoramos quando íamos morar juntas. Lembra? Ela tem um janelão de vidro, paredes coloridas e uma primavera enorme na entrada. Você vai a-m-a-r conhecer. - ela deslanchou a falar e eu agradeci mentalmente por ter tido a chance de conter o calafrio que aquele encontro estava me causando - Que alegria te ver! Como você está linda. Bem que a previsão dos astros me disse que encontros importantes com o passado aconteceriam hoje. Você acredita que eu ainda leio aquele site de astrologia todos os dias? Que emoção te ver. Acho que vou chorar. Ando meio emotiva. Deve ser a TPM. Finalmente comecei a acompanhar meus ciclos de pertinho como você tanto me ensinava a fazer. E me conta, que que cê tá fazendo da vida?
Passei um tempo envolvida naquela conversa sobre acontecimentos que faziam algo tilintar dentro de mim mas que não me remetiam a nenhuma memória concreta. Não me lembrava dos lugares que ela mencionava, das pessoas e muito menos do seu nome. Só consegui sustentar aquela conversa até o fim, sem causar pânico àquela estranha, contando com a habilidade que conquistei me relacionando com pessoas íntimas-de-internet. Depois de alguns anos de proximidades estabelecidas através de fotos e registros diários de comidas, reflexões, auto-retratos e cenas cotidianas irrelevantes trocadas através de uma tela, era consideravelmente fácil me sentir por dentro em conversas sobre experiências íntimas, mesmo com quem nunca compartilhei nenhuma experiência de carne e osso.
Mas algo me dizia que aquele não era o caso. Ela tinha um interesse genuíno, raro, em saber como eu estava. Senti que tinha estado diante de alguém com quem realmente dividi momentos muito importantes da vida e não conseguia encontrar em mim nenhuma pista de quem era. Falava com tanto carinho sobre coisas incríveis vividas que me fazia querer muito que eu estivesse mesmo em todos aqueles acontecimentos. Entretanto, aquelas lembranças me traziam nenhum registro a mente.
Entrei em desespero diante daquela fenda profunda. Pequenas faltas na memória já tinham me ocorrido nos últimos anos. Um endereço ali, o nome da capital de um país aqui, uma informação que eu costumava ter na ponta de língua acolá. Coisas desimportantes o suficiente para não causarem preocupação. A sensação não era nova, mas agora era mais intensa. Me fazia aflita como se eu estivesse diante de uma casa se incendiando. Um incêndio lento em que as labaredas não comiam tudo de uma vez. Elas iam lambendo as coisas aos pouquinhos. Coisas que, no caso, eram as memórias. E casa que, no caso, era o cérebro. Não era como se tudo estivesse sumindo de uma hora pra outra. As memórias pareciam estar indo embora uma por vez, reduzidas a nada pelo fogo. Vou correr para salvar o que desse incêndio?
Talvez eu já estivesse recebendo sinais dessa fumaça há tempos. Tentando negar sua existência, nunca me prestei a ligar o alarme de emergência. Imaginava que ainda tinha alguns anos antes dele soar pra valer. É bem verdade que há tempos eu já não era mais a menina com memória de elefante, como dizia minha mãe. Mas daí a começar a vislumbrar o fim do túnel, achei um pouco demais.
Alguns dias se passaram, segui a vida apesar desse incômodo. Em breve ele também caiu em esquecimento. Até que, durante minha caminhada diária pelo bairro, um riff de guitarra me fez sentir o chão como se tivesse caído do alto no meio de um sonho. No segundo seguinte era como se eu estivesse recebendo de volta um pedaço enorme da minha vida. O cheiro da rua mudou. Os outros sentidos não ficaram para trás e logo eu estava ouvindo e revivendo dias muito familiares. A música tocava e as cenas tomavam forma diante dos meus olhos. Festas, dias difíceis no trabalho, aquele amor que ainda não tinha me feito quebrar a cara, encontros tediosos com familiares difíceis e amigos, muitos amigos queridos. De repente, entre eles, a reconheci. Dançando com os punhos docemente fechados, que desciam rumo ao chão, um de cada vez, acompanhando os joelhos. Sorria largo, olhava pra baixo e fechava os olhos bem apertadinhos, expressão que eu reconhecia como a sua tentativa de curtir ao máximo aquele momento com ela mesma. Num relance levantou a cabeça e, por entre a franja, me chamou com o olhar de um jeito irrecusável para dançar.
Era ela! No colo de quem derramei litros de lágrimas. Pra quem tinha entregado os conselhos que costurei com mais carinho. Minha mais preciosa confidente. Aquela mulher com quem conversei dias atrás, sem fazer ideia de quem era, se tratava de uma pessoa muito fundamental em minha vida. Tinha registros dos 20 anos que tinham passado gentilmente por seu corpo, mas não restavam dúvidas: era ela. Minha amiga. Minha irmã. Vivi. Óbvio que ela tinha seguido a conversa sem sequer notar o meu esquecimento. Ela jamais imaginaria que eu não a reconhecesse. Isso era impensável. Éramos figuras centrais uma na história da outra.
Parei de pensar naquela cena triste e comecei a dançar junto com aquela imagem holográfica tentando agarrar aquela memória com força. A música acabou e só então me lembrei que estava no meio da rua. Algumas pessoas me olhavam estranho e eu imaginei como seriam as caretas se elas descobrissem que o estranhamento era muito mais profundo do que uma mera dança em público.
Se a descoberta da falta das memórias me assombrava, a descoberta de que aquela música tinha trazido algumas delas de volta me despertou em definitivo.
Ironicamente, aquela caminhada diária que nunca se tornava corrida, mesmo que eu dissesse ano após ano que estava me preparando para uma meia maratona, terminou na maior velocidade que eu certamente alcançaria na vida. Minha prova tinha enfim acontecido e a linha de chegada foi o primeiro papel e caneta que pude encontrar. Parecia que eu estava treinando há tanto tempo justo para aquela corrida.
Enquanto perdia o fôlego subindo as escadas de casa pensei em minha avó cantando “Bandeira Branca” a plenos pulmões depois de 5 anos sem conseguir dizer praticamente nenhuma palavra. Nem mesmo a doença que reduz as lembranças a pó foi capaz de levar aquela música embora. Nunca vou saber se aquela era a trilha sonora de um dia importante que seu cérebro preservou como um bálsamo para enfrentar os meses de cama, ou se era a letra que ela tinha encontrado para tentar nos dizer o que sentia: Bandeira branca, não posso mais. Pela saudade que me invade eu peço paz. Saudade mal de amor, de amor. Saudade dor que dói demais. Vem meu amor. Bandeira branca, eu peço paz.
Como será que aquela memória tão profunda, capaz de resistir ao esquecimento total, nasceu? Que tipo de momento é capaz de gerar registros caixa-preta na mente? Será que a minha vó se deu conta do momento exato em que Bandeira Branca ficou colada pra sempre dentro dela? Talvez fosse só mais um baile de um carnaval qualquer. Os confetes no chão denunciando uma festa pela metade e ela dançando com os braços pra cima, vestida com uma fantasia brilhante certamente costurada por suas mãos. Será que foi dançando essa música que ela se deu conta do quanto amava carnaval? Será que era o pano de fundo da primeira vez que o olhar dela cruzou com o do meu avô? Ou seria a trilha sonora de um amor que não resistiu ao feriado, mas sobreviveu ao tempo?
Lembrar de minha avó me fez mais calma. Ela foi embora deixando um presente que só agora eu tinha entendido. Uma pista sobre quais tesouros eu deveria resgatar primeiro do meu incêndio mental: as músicas.
Comecei a listar. Foi como mexer num álbum de fotografias antigas. A primeira das músicas me fez me ver criança, dançando livre pela sala, ouvindo os discos dos meus pais. Noutra, senti o frio na barriga do primeiro beijo. Depois vi os ensaios para a apresentação na frente de todo o colégio. Mudei de faixa e senti o peito inflar de amor pelo mundo. Uma paz tão profunda. A lembrança de uma noite especial de arte. Outra de muito samba. Minha espiritualidade toda resumida em uma melodia que me arrepia todo o corpo. Eu, dançando no escuro, buscando meu lugar. Logo veio aquela em que lembro de me casar com o olhar do meu marido antes mesmo dele saber. Os dois ali se amando mesmo. A trilha sonora do musical favorito da minha mãe que assistimos de mãos dadas, eu, ela e minha irmã, chorando as três. Logo estávamos no meio da pista, rainhas da dança, eu ainda com 18. A rodinha de dança dos 20 e poucos, formada pelos meus amigos, de onde eu sentia que podia tudo. Meu pai me ensinando a decifrar significados nas letras cantadas enquanto ouvíamos Elis, antes mesmo que eu soubesse ler. O choro incontrolável do coração quebrado. Cenas de carnaval, de nascimentos, de partidas. Minhas preces. Cada música ia me trazendo situações e cada situação me trazia novas músicas.
Enchi uma folha com algumas dezenas de títulos. Nasceu meu testamento musical. Terminei a folha colocando instruções. Aquela lista servirá para me lembrar, quando eu estiver diante da morte, que a vida valeu cada segundo. Músicas para serem as minhas palavras quando eu não souber dizer o sofrimento do fim. Os remédios para me acalmar nos dias de dor. A possibilidade me transportar pra outros lugares quando os meus movimentos cessarem. Graças ao meu primeiro esquecimento grave me habituei a tentar não esquecer de mais nada. Nunca mais parei de listar minhas músicas memórias.
A minha avó perdeu as palavras, mas ficou com a música até o final. Talvez um dia eu também vá perder totalmente as palavras. Nesse dia talvez as músicas também possam ser minhas companheiras até a última dança. Quando me faltarem totalmente as palavras e o mundo me parecer irreconhecível, por favor, aperte o play nessa lista para mim.
saidera:
foi massa a festinha do penúltimo e-mail heeein? então agora no final de todos vou tentar seguir essa puxação de papo apresentando alguém de uma galera pras outras galeras.
hoje queria apresentar Laura e Raquel pra vocês: elas são a dupla incrível que criou e toca a Cora - uma consultoria estratégica para sustentabilidade nos negócios de moda. eu admiro muuuito o trabalho que elas tem feito pra propor novos modelos de trabalho dentro de uma indústria que inquieta tanto a gente, como a da moda. tanto que eu penso que o Roupa Livre, quando virasse gente grande, ia ser meio assim que nem a Cora. a gente já se curtia de longe há algum tempo, mas foi só esse ano que conseguimos começar a trabalhar mais de pertinho. e está sendo uma alegria! nesse primeiro mês de escritas juntas, mergulhamos nas reflexões sobre a importância das relações como alicerce pras transformações que queremos construir. disso saiu uma série de posts e uma ferramenta bem massa pra ajudar a mapear as nossas relações e cuidar melhor delas. é o Mapa das Relações e tá aqui nesse link ó.
por hoje é só. até a próxima semana.
se cuide.
um beijo