tempo de escrita: do e-mail, 30 minutos. do artigo 4 anos
tempo de leitura: 10 minutos
dá pra ouvir aqui.
Minha nossa, como que vou dar conta de terminar de escrever esse artigo?
Uma amiga minha xará comentou “Mari, é muito interessante você trazer a escrita do artigo científico com uma carga diferente da escrita criativa. Isso tá te atravessando de alguma forma?”
Minha nossa, sim. DE MUITAS FORMAS. Me sinto num trabalho de parto. Sendo que depois dessa travessia quem vai nascer é a Mari, finalmente, arteterapeuta. Algo que eu desejei, planejei e construi ao longo dos últimos quatro anos. E por mais leve que tenha sido a caminhada, um rito de passagem sempre gera movimentos intensos né? E até acho que é assim mesmo que tem que ser pra criar o registro de que a transformação aconteceu. É assim com o parto e é assim com os vários outros nascimentos que damos conta de trazer ao mundo ao longo da vida. Mas como dói né?
Para o caso desse artigo, em específico, sinto o peso extra da responsabilidade pelo tema que escolhi, pelo tanto que eu sei que ele demanda um cuidado sensível na abordagem, pelo contato direto que ele tem com o sofrimento de muitas mulheres e pelo contato direto que tem com os vários sofrimentos que eu mesma vivenciei nos meus processos de decidir ser mãe ou não.
Então, agradeço todos os dias por praticar bastante a minha escrita, explorar ela livre e leve em vários momentos pois acho que sem isso ia estar bem mais travada neste ponto. Agora, faltando 14 dias, me sinto confiante. Sei que vou chegar no último ponto final deste artigo. Já cheguei lá em outros momentos, sei que tem caminho! Mas também respeito as palavras demais para dar a importância devida na escolha de cada uma delas e me permitir estar um pouco apavorada neste momento.
Hoje é o dia que eu mais ou menos tento enviar essa carta mensal, entre dia 20 e 24 tenho enviado - pode reparar nos últimos envios! já foram 3! podemos chamar de consistência? - e vou parar aqui nessa reflexão inicial pra continuar no foco por aqui.
Mas senti de compartilhar com você em que pé está a introdução do artigo. Acho que vou sentir essa escrita menos solitária se outras pessoas puderem trocar impressões sobre o que está nascendo do lado de cá. Se você ler, me escreve? Me conta se tá fazendo sentido? Se tá muito redundante? Se você sente falta de algo? Se te lembra alguma leitura?
(Se quiser, inclusive, fazer comentários à lá google docs, tá aqui o link pro arquivo.)
Ai vai:
ARTETERAPIA: ARTE PARA ILUMINAR OS MEDOS DAS MATERNIDADES Mariana dos Santos Pellicciari
INTRODUÇÃO
A maternidade, enquanto construção simbólica e social, transcende o aspecto fisiológico, envolvendo significados múltiplos e paradoxais que impactam profundamente as mulheres. Tanto é que se torna impossível falar de maternidade no singular. Como bem pontua a Dra Silvane Vasconcelos, “Não existe A maternidade. Existem maternidadeS - e a cor da pele atravessa a experiência diversa das mulheres que maternam.” Diversas variáveis, além da cor de pele, como classe social, orientação sexual, contexto rural ou urbano e círculos sociais e religiosos, influenciam a forma como a maternidade é interpretada e vivenciada. Para destacar seu caráter múltiplo, este artigo abordará a maternidade no plural.
No contexto clínico, é possível observar que os medos e as indecisões relacionados às maternidades são frequentes e, apesar disso, raramente discutidos abertamente, mesmo em espaços de confiança. Contudo, a dúvida sobre ser ou não ser mãe é um tema recente na sociedade, pois, por gerações, ser mãe era visto como o destino natural e único das mulheres, e as que optaram por outro caminho foram consideradas desviantes. Essa perspectiva limitante do potencial criativo das mulheres permanece enraizada no inconsciente coletivo, fazendo com que os dilemas decorrentes destas reflexões gerem sofrimento psíquico, afetando relacionamentos — sobretudo amorosos — e limitando a busca por realização pessoal para muitas mulheres.
Segundo Tocquet, o sofrimento é a manifestação do impedimento da plena realização do Self. E portanto, o sofrimento gerado pela indecisão com relação ao desejo de ser mãe nos aponta para a necessidade de oferecer apoio terapêutico para que as mulheres possam se conectar com seus desejos e anseios autênticos, pois o processo de individuação está interligado com a realização das potencialidades de um indivíduo.
Para Jung, o objetivo de toda personalidade é chegar ao autoconhecimento, sendo que conhecer o próprio Self representa a realização da sua totalidade e individualidade. A esse impulso inato rumo à totalidade, Jung chama de Individuação. Trata-se de um processo que requer que o indivíduo dê sentido e significado para a sua própria existência, trazendo um sentido interno de direção.
O Processo de Individuação é, pois, “... um processo de diferenciação que tem como meta o desenvolvimento da personalidade individual”. Individuação “... significa também separação, diferenciação, o reconhecimento do que é nosso e do que não é nosso”.
A individuação exige que cada pessoa encontre sentido e significado em sua existência, algo que as maternidades podem tanto favorecer quanto dificultar, a depender de como são vivenciadas e do contexto de suporte que a mulher está inserida. Uma vez que é tão mergulhada em simbologias e sentidos coletivos ancestrais, sem o exercício do discernimento individual, vivenciar a maternidade pode representar um bloqueio na busca de realização do Self para certas mulheres.
Sendo as maternidades construções simbólicas, demandam a elaboração individual para que cada mulher possa vivê-la, ou não, de forma saudável e íntegra. Oferecer este espaço de elaboração beneficia todas as mulheres, mesmo as que nem ousaram questionar se este é mesmo o seu desejo de realização ou não, para que possam fazê-lo dentro dos seus próprios princípios de prazer e desejos.
Segundo Iaconelli, o ciclo gravídico puerperal já é reconhecido com o período em que o risco de adoecimento psíquico é maior do que em qualquer outro momento da vida de uma mulher branca cisgênero na contemporaneidade, particularmente devido aos traumas intrinsecamente associados ao parto e ao puerpério, agravados pelo contexto social patriarcal e maternalista dos dias de hoje. A imposição histórica do papel de cuidadoras exclusivas às mulheres, consolidada no conceito de maternalismo que predomina na sociedade, é uma das raízes dessa problemática. Como explica Vera Iaconelli (2023), o maternalismo justifica e reforça o lugar das mulheres como responsáveis pela reprodução social, perpetuando desigualdades que impactam a saúde mental feminina, aumentando o peso desta decisão.
Diante desse cenário, a arteterapia surge como uma abordagem potente para apoiar a construção de significados singulares sobre as maternidades. Um processo terapêutico que pode beneficiar tanto mulheres que desejam ou são mães quanto aquelas que optam por não sê-lo, oferecendo um espaço seguro para que possam questionar e ressignificar expectativas sociais e culturais, permitindo que cada mulher vivencie a sua maternidade — ou a ausência dela — nos seus próprios termos.
Este artigo busca explorar a possibilidade de construção de uma simbologia pessoal que apoie mulheres na elaboração de seus medos relacionados à serem ou não serem mães. O objetivo é ajudá-las a acessar seus reais desejos e lidar com as dúvidas sobre o tema de maneira a favorecer o processo de individuação. Essa abordagem visa reduzir o sofrimento psíquico e criar condições para que cada mulher encontre sua realização do Self.
As páginas seguintes revelarão as principais descobertas das experiências vivenciadas ao longo de 40 semanas de estágio com o grupo (des)construções maternas, formado por mulheres que enfrentavam medos e dúvidas, que muitas vezes causavam sofrimento, com relação ao desejo de serem ou não mães. Também se apoia em uma jornada pessoal da autora em torno das transformações geradas pela indecisão com relação à própria maternidade e do processo de formação profissional como arteterapeuta. Sendo assim "...fruto de uma criatividade pessoal e de um desenvolvimento coletivo” assim como Anne Fraisse descreve a criação da própria Análise Psico-Orgânica.
O trabalho de atribuição de significado pessoal sobre a maternidade pode trazer tanto benefícios para a regeneração de experiências vividas em relação à sua ascendência quanto com a sua descendência, potencializando a construção de relacionamentos mais saudáveis em todas as direções do sistema familiar.
A psicanálise revolucionou a compreensão sobre as maternidades, fundamentais para a compreensão do desenvolvimento do ser humano, mas também e criou mitos sobre ela como explica Vera Iaconelli, uma vez que a psicanálise é contemporânea ao maternalismo e por isso imputa a raiz de muitas dores psíquicas à relação com a mãe. A arteterapia pode trazer importantes contribuições para ampliar esta visão e reverter a fonte de sofrimento da experiência de muitas mulheres com relação às maternidades.
As maternidades são um assunto para todas as pessoas que nasceram, afinal de contas. A sobrevivência é um tema que precisa ser pensado em coletivo.
A insistência num modelo anacrônico de cuidado, baseado na inteira responsabilização das mulheres, é fonte de inúmeros sofrimentos e adoecimentos que observamos na clínica, reiterando a ameaça ao nosso futuro. (Iaconelli, 2023) Dar a possibilidade de que cada mulher possa elaborar seus desejos é uma importante contribuição no embate pela responsabilização sobre o cuidado com as próximas gerações, nomeadas como políticas de reprodução. Reavaliar nossas crenças sobre as maternidades é o primeiro passo - e pré-requisito - para que encontremos soluções sustentáveis para as infâncias e para as lutas das mulheres.
Nos vemos daqui um mês, espero eu, formada <3
Um beijo, até breve!