escrevo como quem se ouve
escreve-escuta-escreve-escuta-escreve
tempo de escrita: 4 horas
tempo de leitura: 11 min
dá pra ouvir também aqui.
fazer a versão em áudio dos textos que escrevo por aqui tem sido uma das alegrias inesperadas de fazer essas cartas semanais. sempre achei o máximo quando via notícias e posts com a versão lida, para quem quisesse e precisasse ouvir, e decidi tentar fazer. só que não esperava que tantas reflexões e aprendizados iam surgir daí.
me ouvir dizendo o que eu escrevo tem ajudado a desbloquear minha escrita, organizar melhor os raciocínios, melhorar a revisão dos textos e valorizar mais a palavra falada.
pra além de transcrever pra acessibilizar, isso tem me feito praticar uma das técnicas mais potentes pra gente desbloquear nossa expressão: a escuta. nesse caso, a escuta de si.
ler em voz alta é um recurso conhecido de edição, mas eu acabava não usando tanto no dia a dia por pensar que a leitura mental que eu faço dos textos já seria suficiente. mas não é. tem uma diferença enooorme a gente ouvir a nossa voz pra fora do que só a voz interna.
isso vale tanto pra escrita tanto quanto pros pensamentos que ficam nos atormentando também. uma amiga me contou que começou a gravar áudios pra ela mesma quando estava se sentindo angusitada e começou a perceber que ficava mais calma só de gravá-los. faz todo o sentido com o que a minha terapeuta disse esses dias: “a terapia é a cura pela fala”.
esse “se escutar” inclui aspecto um sutil de ouvir desejos internos, vontades, se respeitar, perceber o que estamos sentindo e se expressar a partir desse lugar - que é algo que, de certa forma, a gente tem falado aqui nas cartas anteriores - mas hoje eu queria trazer um aspecto, digamos, mais prático desse ouvir/escutar.
o Marcelino Freire fala que ele escreve fora de casa, longe do papel, ouvindo as pessoas e as histórias que as ruas lhe contam. num tempo de mais limitações de circulação, a escuta de si pode ser uma boa fonte de criatividade para ser explorada, que tal?
gravar o que se quer dizer por escrito é uma dica poderosa para lidar com a dificuldade de começar um texto. quando acompanho alguém nas mentorias individuais de comunicação que eu ofereço é comum que a pessoa me conte com uma super fluidez sobre o que ela gostaria de escrever, mas, na hora de colocar no papel a coisa não flui da mesma forma. tanto que em vários momentos vou só anotando o que a pessoa tá falando e devolvo um texto “pronto” a partir dessas anotações. é engraçado que algumas pessoas se surpreendem com a qualidade do texto sem se dar conta de que, na real, ele tava pronto o tempo todo dentro dela! o que tá escrito é o que ela acabou de me dizer. aquelas palavras só precisavam encontrar o caminho da cabeça pro papel. o grava-escuta-escreve pode ser um encurtador desse caminho.
essa tática já me ajudou muito em alguns momentos em que não conseguia colocar em palavras minhas ideias e raciocínios. uma dessas situações foi quando estava tentando achar A frase para explicar sobre o propósito do Roupa Livre. tava angustiada nessa questão até o que o Dani, meu companheiro (esse é o nome do Larusso, pra quem não sabe hehehe ♥), me perguntou: “tá mas o que que você quer dizer para as pessoas?” e eu respondi de sopetão “quero dizer que a gente não precisa de mais roupas novas que a gente precisa só de um novo olhar”. pronto, tava escrita a frase que melhor ajudou a explicar o projeto nos últimos 6 anos.
ter alguém pra nos escutar ajuda demais nesse tirar de dentro o que se quer dizer, mas, a gente pode ser esse ouvido externo pra nós mesmas também, com uma ajudinha da tecnologia nessa tarefa.
escuta-escreve em ação:
de uma forma prática, esse processo tem rolado assim:
1. escrevo, num Docs ou bloco de notas, uma primeira versão do texto
2. me gravo lendo no celular - só nessa primeira lida já vou percebendo coisinhas pra melhorar do texto
3. me ouço lendo - na escuta aparecem mais outras várias coisas pra editar
4. volto pro Docs para editar o texto
5. regravo a leitura do texto, já editado - nem sempre consigo gravar uma leitura inteira de uma vez, então vou lendo parágrafo por parágrafo e junto num editor de áudio depois
6. subo o áudio completo no SoundCloud pra ter um link pra colocar aqui, finalizo a edição do email e disparo.
algumas vezes, eu tenho uma parte do texto e começo a ler. quando faço a leitura eu completo a frase falando e volto pra escrever o que eu tinha falado, então esse processo vai se complementando como se fosse um bate bola.
tenho experimentado também a funcionalidade de transcrição do Soundtrap, que é um site pra quem gravar músicas ou podcasts que tem uma funcionalidade que digita o que você fala, e agiliza esse processo. funciona bem direitinho - só tem que corrigir uma ou outra palavra depois - a única coisa ruim é que tem um limite de uso da função no modo gratuito, então tem que ver se vale a pena pagar por isso no seu caso. aqui ainda estou analisando.
essa história de transcrever os textos também tem sido um bom jeito de me revisar melhor, tornando mais fácil acertar partes do texto que não ficaram tão fluidas na escrita e conseguindo perceber trechos que estão muito duros ou que não representam o jeito que eu falo na vida real.
pra mim é sempre difícil pegar essas pequenas correções de algo que eu escrevi. me ouvir traz tipo uma visão de fora, que é uma baita mão na roda nessas horas.
essa escuta do que se quer dizer também ajuda a criar a linha de raciocínio para ideias que estão confusas. eu não sei se acontece com vocês também, mas minha cabeça conecta 1000 assuntos por vez e é bem fácil eu me perder no meio deles e não sair muito do lugar (talvez vocês percebam um pouco disso aqui nessas cartinhas hehe).
a primeira vez que fui tentar gravar um podcast, por exemplo, tinha algumas ideias do que queria dizer, mas tava muito difícil criar um roteiro pra me guiar nessa conversa. então o que eu fiz foi, a partir dessas ideias tão soltas e misturadas, comecei a gravar e deixei tudo sair, sem me preocupar com a lógica. depois, fui ouvindo esse rascunho, percebendo os pontos que eu me perdia e foi me ajudando a criar uma narrativa a partir do que tinha dito.
percebo que cada vez que faço esse jogo de escuta-escrita vou ficando melhor em organizar e simplificar raciocínios. é como se eu fosse criando um caminho pelo qual depois é mais fácil de passar. tudo uma questão de prática.
a importância de escrever honrando a fala
aprendi com uma cliente que os ensinamentos do Yoga foram transmitidos ao longo dos vários séculos desse memo jeitinho: o mestre ia falando e os aprendizes transcreviam - ou seja, se você hoje se beneficia dos efeitos dessa prática, saiba que foi por conta de boas falas e de bons ouvintes que ela chegou até você.
pros lados de cá, mais especificamente na América Latina por conta das violências coloniais, essa integração entre fala e escrita não teve o mesmo sucesso, uma acabou se sobrepondo à outra e muita sabedoria se perdeu ou ficou diminuída nesse processo.
eu estava participando de uma leitura em grupo do Mbaé Kaá, um livro que fala da botânica indígena e aponta o quanto o sistema de classificação das plantas dos indígenas é tão ou mais rico e sofisticado do que o mais requintado sistema científico botânico. a única coisa é que ele não se enquadra numa lógica cartesiana e nem foi transmitido por anos e anos de predominância da linguagem escrita. mas a sofisticação já está presente ali, num nível até mais profundo.
muitas vezes a gente depende da palavra escrita e ela acaba funcionando como uma muleta que nos afasta de sabedorias que estão no corpo, que estão no imaginário coletivo e nas sabedorias ancestrais. é importante a gente saber que esse processo de extermínio aconteceu e continua acontecendo com os corpos, com as ideias e com essas sabedorias.
nesse mesmo livro o autor escreve da sua admiração de como a língua indígena perdura e sobrevive por tantos anos mesmo tendo sofrido tantas violências, tendo chegado a ser proibida, em 1755, mas ainda sim perdura até hoje.
um dos aspectos que ele trás é a importância da gente salvar essa língua pq de alguma forma a gente vai estar salvando a conexão com essa terra em que vivemos. aqui vai um trecho do livro pra vocês:
“Foi a língua mais falada na América, a que ocupou maior área e que, apesar de todos os entraves que tem tido e dos destroços que sofreu, perdura e perdurará enquanto a nossa natureza existir, porque aos seus produtos esta língua está vinculada. Muitos estropiados, alguns adulterados, qua se todos os seus termos perpetuam assim mesmo o nome dos nossos rios, dos nossos lagos, das nossas montanhas, dos nossos animais, das nossas plantas e de localidades, além dos nomes da família, de objetos vulgares e de diversos usos. Se é pouco falada, está ainda enraizada numa grande população do norte do país.”
fico refletindo que fazer essa conexão entre a palavra falada e a palavra escrita, pra nós que fomos educados dentro desse sistema dominador e colonial, é um processo fazer esse caminho contrário de valorizar a palavra falada. sinto que fazer esse exercício simples de escrever falando pode ser um jeito da gente ir retomando o caminho de volta pra casa. pelo menos pra mim essa reflexão tem feito sentido.
cuidar para que a oralidade tenha um papel de importância é fundamental pra gente se escutar mais e poder cuidar desse lugar em que a gente vive.
experimentar outras linguagens de expressão também vai abrindo outros caminhos pro raciocínio. eu me percebo muito imersa e viciada numa linguagem mais escrita e cartesiana. até mesmo essas cartas ou até essa versão lida do que acabei de escrever ainda é bem durinha e ligada a esse raciocínio linear de escrita - começo-meio-fim. e às vezes a gente ouve um grande mestre falando, um líder comunitário ou indígena e percebe que a fala flui solta e muito conectada ao momento presente. a gente caminhando pra essa conexão vai estar indo num caminho muito bonito pra gente voltar a se expressar de um lugar mais natural.
então fica aqui o meu convite pra você experimentar essa prática. se quiser me manda um áudio do seu texto, vou adorar ouvir. a gente tá num momento em que as tecnologias de áudios, podcasts e etc. estão abrindo caminhos pra essa voz falada, mas acho importante a gente refletir sobre as intenções por trás e o que a palavra falada nos proporciona. foi um pouquinho sobre isso que quis compartilhar aqui hoje.
nos vemos na semana que vem, lembrando que na semana que vem tem a oficina pra gente reescrever o amor em que a gente vai fazer alguns exercícios de escrita pra se relacionar com o amor a partir da história que quer contar e não da que contam pra gente.
espero vocês, um beijo, se cuidem, até mais!