escrevo como quem pede ajuda
como é pedir ajuda, pra você?
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tempo de leitura: 10 min
dá pra ouvir também aqui
pedir ajuda é:
_se fazer de vítima
_ser fraca
_se dizer vulnerável
_se colocar em uma relação desigual, como se um estivesse acima do outro
_algo que me faz sentir obrigada a retribuir
_algo vergonhoso, em todas as situações. algumas mais que as outras
_incomodar. sempre fico com receio de incomodar.
_difícil
_algo que tem que ser uma pessoa aberta pra fazer
_algo que cria uma sensação de débito
_algo que cria uma relação eterna de dívida, gera uma gratidão doentia
_algo que faz querer fazer tudo certo pra não decepcionar quem me ajudou
_não sei pedir ajuda
_não sei o que é
_deixar minha máscara cair e deixar de ser essa pessoa que não precisa de nada nem ningúem
fez sentido pra você? alguma dessas definições te contempla?
isso foi o que surgiu quando começamos a listar o que significa “pedir ajuda”, pra cada uma de nós, numa dessas noites no Ninho de Escritoras.
possibilidades de significados mais “positivos” só apareceram quando a gente falou de pedir ajuda pra algo que não é pra si. por exemplo: quando a ajuda é pra algo que não é meu, ela surge como uma troca saudável ou com o potencial de realizar algo maior do que quando se está sozinha.
(fico muito curiosa pra saber como seriam as respostas em um grupo que não fosse só composto por mulheres. 🤦♀️)
essas definições que surgiram me lembraram de um conceito que aprendi estudando comportamento canino (!*): learned helplesness ou, desamparo aprendido, em português, que fala do resultado de aprender, de tanto receber respostas negativas quando toma alguma iniciativa, que você não tem controle nenhum sobre o seu ambiente e não pode fazer escolhas em busca de algo mais favorável à sua vida. veja bem, não estamos falando aqui de querer controlar e fazer tudo o que deseja o tempo todo, mas sim de poder fazer escolhas até simples, dentro do que é factível de manejar. pros cachorros seria algo como demonstrar determinados comportamentos, que atividades pode ou não fazer e assim por diante. (pra nós, em tempos pandêmicos, a lista de coisas que não podemos escolher quando fazer anda até que parecida.)
no caso dos cachorros, o desamparo aprendido se refere a um efeito colateral de adestramentos que usam técnicas agressivas para punir comportamentos naturais dos bichos. ex: o cachorro aprende que quando se aproxima de algo ou alguém (que é um comportamento natural), toma um choque ou é enforcado (sim!). começa a aprender então a desistir de manifestar esses comportamentos naturais e “desliga”, parando de fazer isso. é nessa hora que esse tipo de treinamento "dá certo” e o cachorro é lido como bonzinho e bem educado - quando na real só tá num nível de apatia profundo mesmo e pode sofrer uma série de outras complicações e somatizações futuras. em humanos, o desamparo aprendido já foi estudado como a raiz de muitos casos de depressão.
qualquer semelhança com a nossa apatia atual não é mesmo mera coincidência, eu acho. (inclusive pq é só mesmo dentro dessa lógica colonial e capitalista é que a relação com outros seres vivos pela via da dominação e bloqueio dos instintos, como no caso deste tipo de adestramento, é sequer cogitada) pra mim, nossa dificuldade em ter ajuda é um dos resultados colaterais de viver dentro de um sistema com tão pouco espaço pra apoios coletivos e suportes sociais. quando a gente percebe que a estrutura social não nos ajuda e sente dificuldade em pedi-la, até pra pessoas próximas, podemos chamar sim de um tipo de desamparo aprendido.
ao longo da vida a gente também recebe certas punições, que assumem o papel de crítica, violência, abandono, dificuldades financeiras, etc., como resposta a algum comportamento natural da nossa espécie que a gente demonstrou, como um desejo de se expressar, de pertencer, de buscar acolhimento e segurança etc.. punição essa, importante lembrar, que acontece em diferentes níveis de gravidade e de risco à vida, dependendo do lugar que se ocupa na sociedade - o filme Dois Estranhos mostra de uma forma tristemente didática essa dinâmica de se ver sem saída, sendo um homem negro, ao simplesmente tentar voltar pra casa (comportamento mais do que natural né? a pessoa querer voltar pra própria casa). e a cada resposta negativa que a gente recebe vamos aprendendo que não há mesmo possibilidade de agir em busca de uma vida mas satisfatória. quando na verdade, muitas vezes estamos a um pedido de ajuda para algo que precisamos, não fossem as estruturas que bloqueiam nossas interações.
*tenho estudado bastantão sobre comportamento canino por conta dos bichinhos aqui de casa (conto essa história depois pq ela tomaria o email inteiro) e entendo que a comparação do nosso comportamento com o dos catiorros possa levar pra caminhos bem bem bem ruins como a minimização do papel social de cuidar de uma criança como na polêmica “mãe de pet” ou a humanização dos bichos, que causa tantos transtornos pra eles também. mas me arrisco mesmo assim a fazer esses paralelos pq esses estudos tão me mostrando muito mais sobre as nossas semelhanças do que diferenças. e eu boto muita fé que quanto menos a gente se enxergar tão diferente ou superior a todos os outros seres vivos, menos as nossas relações serão domesticadoras ou castradoras de nossas naturezas selvagens e poderemos viver, todes os seres, as nossas plenitudes de sermos respirantes nessa terra.
imaginando outras ajudas
bem, como o Ninho existe, entre tantas outras coisas, pra gente poder reescrever a forma como lê o mundo e é lida por ele, depois de fazer o levantamento inicial de percepções partimos pra imaginar outras relações com a ajuda.
ao invés de ficar só na sensação que o pedir nos causa hoje, fomos olhar pra como gostaríamos que fosse essa relação, tendo estas perguntas como guia:
O que você gostaria de mudar no seu jeito de pedir?
Que palavras podem ser ressignificadas para que essa mudança aconteça?
O que você mais precisa e gostaria de pedir agora? Pra quem você pediria?
a partir dessas perguntas nasceram textos sobre como pedir ajuda é coragem, e não fraqueza, já que o socorro fortalece e, em muitos casos salva - sendo a diferença entre a vida e a morte.
também escrevemos sobre como oferecer é uma forma de receber ajuda pq a gente se ajuda quando ajuda alguém. quando, por exemplo, no meio de uma situação de dor, a gente acha força para amparar a dor de outra pessoa, o amparo se torna uma via de mão dupla. e que muitas vezes, quando a gente acha que precisa é que pode oferecer.
surgiram textos com reflexões bem importantes sobre saber receber ajuda. sim, muitas vezes a questão nem é sobre pedir, é sobre aceitar o que vem, já que as pessoas oferecem o que podem dar e nem sempre é necessariamente o que precisamos. nesse ponto, falamos que tanto cabe se abrir para a generosidade, quanto refletir sobre os seus próprios limites e desejos, pra não sair aceitando tudo o que vem só pq sim. e em como as relações de poder podem estar presentes nessa troca.
abrir o significado tanto amplia possibilidades quanto mostra o cerne de algumas questões. e, com relação a ajuda, o desequilíbrio do poder apareceu.
“Ajudas são presentes, mas nessa sociedade em que vivemos, sinto que tudo tem um preço. Quanto vale ou é por quilo? Como, no meio do capitalismo, vou realmente acreditar que não tenho que pagar. Que uma hora, de um jeito ou de outro essa conta não vai chegar?”
- trecho do texto de Dandara Manoela, criado no Ninho
é lindo ver que quando a gente se dipspõe a ampliar os significados, mesmo de algo que parece tão consolidado ou até banal, como a ajuda, encontra taaaantas possibilidades. sempre me encanto com as transformações que essas investigações criam.
no fim acho que todas aprendemos um pouco mais sobre outras formas de pedir e receber ajuda, sem romantizar nem a força e nem a fraqueza do pedir. concluímos que pedir ajuda é uma arte. e a prática dessa arte, no cotidiano, pode ir revertendo esse estado de apatia, ou desamparo aprendido, no nível do que é possível, ou seja, entre nossas relações pessoais.
adiciono a essas reflexões coletivas uma outra aqui, a partir de uma fala que que eu descobri nesse post da fefe resende. fiquei pensando depois de ler o trecho a seguir: pedir ajuda é uma questão de saúde.
"saúde mental é uma condição que se estende muito além da simples ausência de transtornos mentais. segundo a organização mundial da saúde, ela corresponde a um estado de completo bem-estar físico, mental e social no qual o indivíduo se sente bem consigo mesmo e nas relações com os outros, é capaz de administrar as emoções e a própria vida, lida de forma positiva com as adversidades, reconhece seus limites e busca ajuda quando necessário."
- fala de Rodrigo Bressan, instituto Ame Sua Mente:
termino essa reflexãozona (fez tanto sentido pra vc qnt fez pra mim? me conta? quero saber) desejando que a gente possa, cada vez mais, formar ajuntamentos pra segurar os baques nesse nosso caminho coletivo rumo ao chão. que a gente encontre beleza nessa queda, pedindo e oferecendo amparo.
se você curtiu esse tipo de investigação que fazemos no Ninho de Escritoras, te convido a participar dos nossos encontros regulares às segundas-feiras. temos 2 vagas abertas para quem quiser entrar em Junho ;)
ou, se você preferir colocar o pé nessa água antes de mergulhar, no dia 09/06 vai rolar um laboratório de escrita para reescrever o amor, onde vamos fazer essa investigação pra alimentar o inconsciente coletivo com outras referências sobre o amor e pra que a gente viva a partir da história que quer escrever, e não da que contaram pra gente, sobre o amor.
ah! e no dia 10/06 vai rolar o primeiro clube do livro do Ninho de Escritores a partir da leitura de Olhos D’Água, de Conceição Evaristo. as infos estão aqui ó.
vamo nessa?
se cuidem. peçam e ofereçam ajuda sempre que possível <3
até já ;)
um beijo